É uma segunda-feira, dia 23 de maio de 2022 e o calendário mostra o aniversário de Rubens Barrichello. Não somente qualquer aniversário, mas o 50º destes. As comemorações em torno de figuras públicas são curiosas, porque são também a possibilidade de refletir sobre a relevância dos personagens e o que fizeram ao longo da trajetória de ordem pública. É possível celebrar com aquele famoso? Há motivo para celebrar com ele? São reflexos naturais quando pensamos sobre outras pessoas, sobretudo aquelas que não fazem parte da nossa convivência real, de carne osso e grupo de WhatsApp. Até podemos tentar nos esquivar da realidade, mas a verdade é que pensar a partir de nós é um movimento natural. No caso de Barrichello, sim. Comemorar o 50º aniversário é também celebrar a paixão pelo ofício que nasceu encanto. Rubens faz aniversário com a trajetória que todo piloto gostaria de ter: o de viver o esporte de forma pura.
O princípio dos pilotos costuma ser assim, repleto de pureza. Natural que assim seja, uma vez que quase todos começam ainda meninos. O kart vira carro, a paixão vira ofício, coisa séria, ganha-pão. O profissionalismo não tira o carinho de menino e tampouco acaba com o desejo incandescente de fazer aquilo que se ama, viver da velocidade, mas mistura uma série de outras preocupações. Construir a carreira desde as fundações, adubar as oportunidades, buscar patrocinadores, alcançar a Fórmula 1. Nela, galgar até as maiores portas e as mesas mais luxuosas, as equipes tradicionais dispostas a apostar nos serviços daquele que já não é mais tão menino: é profissional e, como profissional, não pode bater roda da maneira que fez um dia.
No caso de Barrichello, a Fórmula 1 foi uma experiência mais extensa que qualquer um vivera até aquele momento. Intensa, ardente e cheia de dores e delícias desde os milagres com a Jordan no começo dos anos 1990, passando pela Ferrari que o fez viver os momentos mais memoráveis da carreira, para o bem e para o mal, e chegando aos anos de piloto veterano com a meteórica Brawn e a Williams. O fim foi amargo, diferente da despedida que esperava e incomodou durante um bom tempo. Talvez ainda o incomode, vai saber, mas fato é que qualquer amargura não tem mais lugar público uma década depois.
A Indy parecia tiro certo, claro, mas nem tudo se desenrola conforme o esperado mesmo para quem tem prestígio para dar e vender. Barrichello voltou ao Brasil, à Stock Car, e se encontrou. Não pela Stock apenas ou por ser campeão logo de cara, mas porque topou com aquilo que não dá para planejar: a pureza.
Como uma aparição vinda a um mundo paralelo onde se esconde, a pureza se mostra quando acha que deve e para quem resolve ser digno dela. Neste caso, a pureza de Barrichello é a oportunidade raríssima de viver a experiência completa de ser um piloto de carros de corrida. Não há aqui uma tentativa de santificar o homem ou de infantilizá-lo. Jamais. Barrichello é um sujeito normal, com seus defeitos, como qualquer pessoa, mas que ama o que faz. Talvez ame mais do que qualquer outro.
Chegar ao Brasil mesmo com a vida feita, o nome edificado e a história escrita permitiu que o peso da politicagem e da defesa do próprio nome, coisas que estiveram presentes a Rubens sobretudo nos últimos anos de F1, arrefecessem. Barrichello ganhou a chance de disputar um campeonato forte no Brasil, mas não só isso: que organizasse a própria equipe para correr todas as competições de kart de quisesse, que fosse a Daytona e corresse as corridas de protótipos nos Estados Unidos e onde quer que quisesse, que vencesse na Argentina e fosse estrela na Austrália.
Em suma, Rubens pôde desfrutar da vida de piloto. Mais que isso: com a idade avançando e os filhos crescendo, recebeu da vida e da pureza um presente: a chance de correr com seus meninos e de ensiná-los mais do que sobre a vida, sobre as pistas. Ganhar com eles, ao lado deles e vendo a trajetória de Eduardo e Fernando. E que presente pode ser melhor?
Mas correr no Brasil entregou uma coisa mais que talvez Barrichello não soubesse: na verdade, e em justiça, talvez ninguém tivesse a dimensão real. Que o público brasileiro é fascinado por ele. As piadas dos tempos de Fórmula 1 podiam até ser cruéis, sim, mas eram fruto muito mais de quem trombava ocasionalmente com uma corrida na TV. Quem ama as corridas no Brasil, adora Rubens Barrichello. E talvez somente as caminhadas destes últimos oito anos pelos autódromos brasileiros é que tenham dado a noção real do sentimento que o fã destes lados tem por ele.
A leveza é um passo natural. Sucesso nas pistas, a vida repleta de piloto e pai de piloto e carinho do público. Barrichello é dono de carisma inegável. É difícil explicar carisma, normalmente um conjunto de características quase inefável, mas não há como negar que é forte quando acessa tanta gente e por tanto tempo.
Mais de uma década ficou para trás desde que Rubens Barrichello deixou a Fórmula 1 após quase 20 anos dentro dela. Lá, serviu como um elo perdido entre gerações que só dialogaram por retrato: esteve com Senna e Mansell e depois com Hamilton e Vettel. A história que escreveu lá, de 322 largadas, foi colossal e deixou a sensação de que seria toda a história da vida ou, ao menos, da carreira.
Pois chegou este 23 de maio de 2022. Com ele, o aniversário de 50 anos. O maior presente que se pode dar a Barrichello hoje é dizer que aquela sensação estava errada. A Fórmula 1 será apenas fração, para si e para o público, de uma história muito maior, mais complexa e que não depende do crivo de um resultado.
Olhada de longe e plena, com panorama completo e distanciamento também histórico, a carreira do piloto brasileiro mais popular dos últimos 30 anos é não somente invejável: é um organismo inteiro que vive dele mesmo sem precisar de validações exteriores.